
Nenhum filme é uma declaração de amor ao cinema tão escancarada e franca como A Noite Americana. Truffaut chega bem próximo do piegas em alguns momentos, mas tudo bem, o cinema também chega às vezes, e ninguém está reclamando. Afinal de contas um apaixonado sempre tende a exageros, e se uma única coisa pode ser dita de Truffaut é que ele era um eterno apaixonado pelo cinema. É um daqueles casos em que o cinema literalmente salva a vida de alguém.
O filme traça a história de Ferrand (vivido pelo próprio Truffaut), um diretor lutando a todo custo para terminar seu filme ‘Je vous presente Pamela’. Entre as muitas dificuldades que Ferrand enfrenta estão os problemas com os atores, entre as principais. Vão da imaturidade de um ator (Jean-Pierre Léaud) e suas paixões infantis, à instabilidade emocional de uma atriz inglesa (Jacqueline Bisset) até a morte de um dos principais nomes do elenco (Jean-Pierre Aumont).
O filme em si é uma aula de cinema. Podemos acompanhar todas as etapas da produção de um filme e parte da pós-produção, quando o diretor e a equipe assistem pedaços recém editados da obra. Uma coisa interessante a se notar é que Truffaut compôs um diretor que escreve o roteiro enquanto o filme já está em processo de produção, algo no mínimo raro, embora existam casos parecidos. Acredito que o diretor francês assim o fez para que o espectador pudesse apreciar também essa importante etapa do processo de criação de um filme, uma vez que toda a história se daria apenas na etapa de filmagem. Como excelente roteirista que era, Trufffaut não deixaria esse importante pedaço de fora de sua narrativa.
Uma outra forma de mostrar o amor e a dedicação sacerdotal ao cinema, é a forma como a própria equipe se relaciona com o cinema. Alphonse (Léaud) em qualquer folguinha diz que vai ao cinema. Em outro momento a equipe quase toda marca de ir ao cinema, mas a assistente de direção no último momento não pode ir, pois tem que ajudar o diretor. Enquanto está no quarto escrevendo o roteiro do dia seguinte, Ferrand confere no jornal o que está sendo exibido nos cinemas da cidade, concluindo que Godfather está arrasando. É uma equipe que preenche seu dia (e muitas vezes a noite também!) com cinema, horas e horas de filmagem, ensaios, construção de cenários e figurinos, e nas horas vagas o que eles fazem? Vão ao cinema. O cinema é, enfim, um trabalho do qual eles não querem descanso, não querem se ver livres e distantes dele.
Outra característica a se apreciar é a enxurrada de citações e referências a filmes clássicos que Truffaut salpica no longa. Dentre todas essas há uma cena memorável, onde Ferrand escuta parte da trilha composta para o filme por telefone, enquanto desembrulha um pacote de livros que comprara. Uma historiadora de Truffaut (cometi a indelicadeza de esquecer o nome dela), comentando sobre essa cena nos extras do DVD, salienta para o fato de que a trilha que Ferrand escuta ao telefone é originalmente de “Duas inglesas e o amor”, um filme de 1971 também de Truffaut. E como este último é uma história que, obviamente, fala sobre o amor, ao usar essa canção em A Noite Americana, na cena onde justamente serão mostrados em plano de detalhe a capa de vários livros sobre grandes diretores, fica mais do que clara a intensa paixão que Truffaut nutria pelos antigos mestres.
Aliás, dos egressos da Nouvelle Vague Truffaut parece ser o que mais se identifica com o cinema americano. Em seu livro, seminal, Hitchcock/Truffaut Entrevistas, essa identificação é muito transparente quando o diretor francês interroga Hitchcock a respeito dos filmes deste último. Truffaut é também o diretor francês do período Nouvelle Vague que é, de certa maneira, mais acessível para o grande público. Pegue alguém que se interesse por cinema minimamente, e o coloque para assistir Os Incompreendidos e Acossado, logo depois compare a opinião desta pessoa.
A Noite Americana ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1974 e concorreu no ano seguinte em mais três categorias (diretor, melhor atriz coadjuvante (Valentina Cortese) e melhor roteiro original. O nome se refere a uma técnica da fotografia que simula a noite, gravando as cenas durante o dia.
Trailer aqui. Já neste blog o autor faz uma comparação (quase inevitável) entre A Noite Americana e Perdas e Danos de Louis Malle, e além disso a alma caridosa teve a paciência de montar todas os pedaços de Je vouis presente Pamela neste vídeo.
3 comentários:
Tão tão belo. Sinto falta desse romantismo da Novelle Vague.
que interessante, tinha ouvido falar muito desse filme, mas nunca o encontro para asssitir...
ainda considero o Cinema paradiso como a melhor declaração de amor ao cinema, mas posso mudar essa minha lista ao assistir esse..Até memso o Rosa purpura do cairo do Woddy Allen é uma belissima homenagem ao cinema, existem otimos filmes com essa tematica....
abraços
Permita-me certa ignorância a respeito, Daniell, pois acho que, se ouvi falar deste filme, já esqueci...
Abraço!
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