Tem um tempo que eu estou querendo uma discussão aqui pelo blog, não no sentido pejorativo, mas no saudável mesmo. E resolvi aproveitar o fato de que tem gente realmente lendo o blog agora (pessoas muito bacanas como os colegas Weiner, Wally, Rodrigo, Marco, Pedro Henrique e outros), pra saber a opinião deles. Não é algo que eu tenha muito claro, uma resposta pronta e objetiva sobre a questão, é mais um incômodo. Quando Tropa de Elite ganhou o Urso de Ouro eu escrevi um post enorme, quase três páginas, com uma série de pensamentos que me perturbavam na época, e que foram catalisados pelo prêmio. Resolvi não postar.

Porém, quando Valente saiu direto em DVD, fiquei muito ansioso para conferir. Adoro o trabalho de Neil Jordan e sou fã de carteirinha de Jodie Foster. As críticas, no entanto, foram negativas em todos os lugares, o que fez minha curiosidade, espantosamente, se aguçar cada vez mais ao invés de retrair. Mas foi o veredicto principal das críticas o fator essencial para que meu interesse aumentasse: o filme nada mais era do que uma defesa da justiça com as próprias mãos. Encucadíssimo com esse veredicto, e cético ao fato de que Neil Jordan defenderia tal ponto de vista, fiquei imbuído de uma vontade enorme de provar que todos estavam errados. Bom, talvez eu não possa fazer isso mais, agora que assisti o filme.
Cineastas são pessoas chamadas a mostrar seu ponto de vista sobre o mundo, e os melhores o fazem traduzindo esse ponto de vista em uma forma absolutamente visual. O problema é quando lidam com temas polêmicos como este. E se alguém quiser contar uma história sobre um nazista? Um nazista sem arrependimento algum? Ele por acaso terá que indexar a sua história um certo tipo de moral transcendente, do tipo, ‘ele sempre se dá mal no final’. Será que nós vivemos realmente num mundo onde uma espécie de justiça universal opera e tem que aparecer obrigatoriamente no cinema?
A questão é que assuntos como a moralidade podem ser abordados de infinitas possibilidades, e certamente cada diretor conta com uma diferente. A pessoa que assistiu Valente comigo adorou o filme, só se desagradou pelo fato de Jodie Foster não torturar mais suas vítimas. Mas o que me irrita realmente é que pessoas que teoricamente deveriam entender de cinema teçam comentários meramente temáticos sobre um filme.
Sendo assim, Valente sofreu críticas sobre seu tema, mas eu me pergunto, porque Tropa de Elite não recebeu o mesmo tratamento? Por que em Tropa de Elite o personagem principal teoricamente representa a lei? Mas ambos são tão assassinos quanto. Com uma diferença: Capitão Nascimento é também um torturador. (Certamente meu companheiro do filme de hoje gosta mais desse último do que de Valente). (Reparem que também não estou entrando em questões estéticas de um e outro aqui, justamente porque isso é o que está sendo questionado, a falta de julgamento estético em prol de julgamentos de conteúdo).
O que eu acho, honestamente, é que a violência é um flagelo. Acho até que é bastante difícil discordar disso, fazendo com que meu ponto de vista não seja tão original assim. Eu posso ficar falando durante vários parágrafos sobre o horror da violência, qualquer um com um mínimo de educação poderia. A questão é que eu me proponho a falar de cinema, e, sendo assim, o que realmente importa são as minhas opiniões sobre a estética cinematográfica e não o que eu penso sobre a violência.

Um diretor certamente passa certo tipo de conteúdo com seus filmes. Em outras palavras, acredito que um realizador cinematográfico pretende que seu público compreenda a mensagem que ele se propôs a passar (pelo menos nos modelos mais próximos do cinema narrativo). Cabe a um crítico de cinema não questionar o ponto de vista de um diretor sobre a vida, mas sim demonstrar de que maneira esse ponto de vista é articulado em um filme e se ele é competente o suficiente para atingir o público emocional ou intelectualmente. Questionar a visão de um artista sobre a vida é trabalho de filósofos e sociólogos.
Não que esse tipo de questionamento não tenha lugar, mas certamente não ocupa a posição central. Obviamente que não conseguimos seguir esse princípio sempre (estou me lembrando nesse momento de ter comentado em uma outra ocasião, que tinha achado Onde os Fracos Não tem vez muito pessimista, mas não me lembro de ter falado que o filme era ruim por causa disso). As incoerências é que me incomodam. Porque insultar um e glorificar outro? Porque o Brasil é uma nação com problemas sociais e o filme de Padilha teoricamente espelha isso? Mas os EUA também não são uma nação ferida? Seus cidadãos não sofrem de uma neurose coletiva e doentia? A guerra e a violência não parecem fazer rima com o hino nacional americano? Essa desculpa não cola, exatamente porque pode ser usada em ambos os casos.
Se julgar um filme por sua temática fosse o mais indicado, hoje em dia nós não estaríamos mais assistindo O Nascimento de Uma Nação, porque o racismo como um fenômeno institucional caiu. E o Encouraçado Potemkin só seria assistido em cineclubes de alunos universitário membros do PSTU.
Considerando, apenas para efeito de análise, que Neil Jordan realmente tenha construído uma obra que defende a justiça com as próprias mãos, que espécie de comentários isso pode gerar? Provavelmente os piores. Mas esses comentários são suficientes para desmerecer um filme como um fenômeno estético?
E só pra jogar mais lenha na fogueira, fico pensando em outros casos. Por exemplo, essas bandas de hardrock européias que pregam uma forma de neonazismo. Alguém seria capaz de defender apenas a ‘qualidade musical’ delas independente do conteúdo? E vocês, o que acham disso tudo?